sábado, 20 de abril de 2019

Ano 2065. Diálogo entre baratas.

- Deixa eu contar… A humanidade já era.
- Como assim?
- Cabô. Num tem mais. Escafedeu-se.
- Sério? Mas cumé ki foi?
- Uma praga. Coisa antiga, que foi crescendo.
- A tal de AIDS?
- Não, essa aí já tinha sido controlada. Acharam um veneno pro vírus.
- Ah sei… Veneno, como os que mataram muitos de nossos antepassados.
- Isso. Aliás, não foi vírus, a causa.
- Então deve ter sido o tal de câncer. Sempre ouvi falar que era um tormento. Quando não aparecia num lugar, era em outro. Fígado, intestino, próstata, mama… Depois ia invadindo o resto. Até no sangue, o danado corria. Um atleta.
- Foi não. Deram um jeito: a tal da mutação genética.
- Essa moça foi quem descobriu a cura?
- Não, sô! Mutação não era ser humano, foi o nome que deram pra solução.
- Nomezinho feio… Gosto mais do que deram pra nós.
- E o nome da causa do fim deles também é mais bonitinho. Mas devastador. [4 segundos de silêncio]
- Falaaaaaaaaaa! Detesto esses teus suspenses.
- Ganância.
- Gabância?
- Não, ô surda! Gannnnnnância, com ennnnnnne. Se bem que até faz sentido. Muitos se gabavam dela.
- Cumé kié? Eles se gabavam de ter um distúrbio?
- Acredite se quiser…
- Bicho estranho, mesmo. Não me admira terem se acabado. Mas fala mais.
- Ganância é assim: você tem uma casa. Ela dá pra sua família, seu cônjuge e filhos. Mas você quer ter outra. E quando tem outra, quer ter uma terceira, e quarta…
- Já sei: o sujeito quer cedê-las pra abrigar outros semelhantes.
- Ahahhaahahah! Se fosse isso, lhe pareceria doença?
- É messsss…
- Até é pra abrigar, mas não de graça. Tem que dar um negócio em troca, o tal do dinheiro.
- Sei, sei… O que eles usam em tudo que é troca, né? Mas fazem uma confusão… Se você vai dum lugar pro outro, tem que trocar um dinheiro pelo outro pra depois trocar pelas coisas. E o que o tal dono das casas faz com o dinheiro que recebe?
- Troca por mais casas.
- Affff, que canseira! Dá preguiça imaginar o trabalho que deve dar manter tanta casa. Por isso que a nossa é abrigo popular, né? Ficamos onde tiver brecha. Fora que é chato, passar o tempo pensando em casa, casa, casa. Usamos o tempo com coisas mais divertidas. Ah, e se os outros humanos parassem de dar dinheiro em troca da casa?
- Ficavam sem casa. Ou ficavam sem roupa pra ter a casa, ou sem comida pra ter a casa.
- Sem piedade?
- Sem piedade.
- Um senso de comunidade assombroso. Mas como é que essa brincadeira de ter casa e não ter casa matou os humanos?
- Porque não era só com casa.
- Eita! O bicho era doido mesmo. Morreu foi de doidice.
- Era com tudo. Casa, carro, relógio, roupa.
- Essas coisas de que eu nunca precisei. A troco de quê, ter esse monte de coisa?
- Impunha respeito.
- Que estranho… Sujeito me põe pra fora de casa, e eu ainda o respeito. Qual a lógica disso?
- Não sei. O mais curioso é que ela valia pra todos. Se você sem casa estivesse no lugar do que tem um monte de casas, faria o mesmo.
- E de onde vinha tudo isso – casa, roupa, carro…?
- Aí que começaram a se ferrar mesmo. Como não eram desenvolvidos pra suportar frio demais, nem calor demais, nem andar nem nadar distâncias compridas, nem conseguiam voar, nem enxergar no escuro, nem comer certas coisas cruas, era preciso derrubar árvores, furar o chão, matar outros bichos pra resolver. Mas eles achavam graça em ter mais do que precisavam e até de competir entre eles por conta disso. Perderam o controle, não sabiam esperar a Natureza repôr o que usavam. Foram derrubando tudo. Fora que, em troca, eles ainda davam pra Natureza um tal de plástico. Esse trem não desmancha nunca!
- Plástico? Outro nome esquisito. De onde vinha isso, sô?
- De um monte de lugar. É um troço que eles inventaram e que você dá a forma que quiser pra ele. Então roupa tem plástico, carro tem plástico, casa tem plástico, lugar pra levar água tem plástico. Mas depois que não servia mais, porque às vezes quebra, às vezes deforma, às vezes eles só cansavam de usar mesmo, eles iam encostando em algum canto. Inclusive, jogavam no mar. Mataram muito peixe, golfinho, tartaruga, desse jeito.
- Deu no que deu. Por isso que a gente tá sozinha no mundo. Cê falou de não terem o corpo desenvolvido pra essas coisas, mas pelo jeito que fala, o menos desenvolvido deles era a cabeça.

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