-
Deixa eu contar… A humanidade já era.
-
Como assim?
-
Cabô. Num tem mais. Escafedeu-se.
-
Sério? Mas cumé ki foi?
-
Uma praga. Coisa antiga, que foi crescendo.
- A
tal de AIDS?
-
Não, essa aí já tinha sido controlada. Acharam um veneno pro
vírus.
- Ah
sei… Veneno, como os que mataram muitos de nossos antepassados.
-
Isso. Aliás, não foi vírus, a causa.
-
Então deve ter sido o tal de câncer. Sempre ouvi falar que era um
tormento. Quando não aparecia num lugar, era em outro. Fígado,
intestino, próstata, mama… Depois ia invadindo o resto. Até no
sangue, o danado corria. Um atleta.
-
Foi não. Deram um jeito: a tal da mutação genética.
-
Essa moça foi quem descobriu a cura?
-
Não, sô! Mutação não era ser humano, foi o nome que deram pra
solução.
-
Nomezinho feio… Gosto mais do que deram pra nós.
- E
o nome da causa do fim deles também é mais bonitinho. Mas
devastador. [4 segundos de silêncio]
-
Falaaaaaaaaaa! Detesto esses teus suspenses.
-
Ganância.
-
Gabância?
-
Não, ô surda! Gannnnnnância, com ennnnnnne. Se bem que até faz
sentido. Muitos se gabavam dela.
-
Cumé kié? Eles se gabavam de ter um distúrbio?
-
Acredite se quiser…
-
Bicho estranho, mesmo. Não me admira terem se acabado. Mas fala
mais.
-
Ganância é assim: você tem uma casa. Ela dá pra sua família, seu
cônjuge e filhos. Mas você quer ter outra. E quando tem outra, quer
ter uma terceira, e quarta…
- Já
sei: o sujeito quer cedê-las pra abrigar outros semelhantes.
-
Ahahhaahahah! Se fosse isso, lhe pareceria doença?
- É
messsss…
-
Até é pra abrigar, mas não de graça. Tem que dar um negócio em
troca, o tal do dinheiro.
-
Sei, sei… O que eles usam em tudo que é troca, né? Mas fazem uma
confusão… Se você vai dum lugar pro outro, tem que trocar um
dinheiro pelo outro pra depois trocar pelas coisas. E o que o tal
dono das casas faz com o dinheiro que recebe?
-
Troca por mais casas.
-
Affff, que canseira! Dá preguiça imaginar o trabalho que deve dar
manter tanta casa. Por isso que a nossa é abrigo popular, né?
Ficamos onde tiver brecha. Fora que é chato, passar o tempo pensando
em casa, casa, casa. Usamos o tempo com coisas mais divertidas. Ah, e
se os outros humanos parassem de dar dinheiro em troca da casa?
-
Ficavam sem casa. Ou ficavam sem roupa pra ter a casa, ou sem comida
pra ter a casa.
-
Sem piedade?
-
Sem piedade.
- Um
senso de comunidade assombroso. Mas como é que essa brincadeira de
ter casa e não ter casa matou os humanos?
-
Porque não era só com casa.
-
Eita! O bicho era doido mesmo. Morreu foi de doidice.
-
Era com tudo. Casa, carro, relógio, roupa.
-
Essas coisas de que eu nunca precisei. A troco de quê, ter esse
monte de coisa?
-
Impunha respeito.
-
Que estranho… Sujeito me põe pra fora de casa, e eu ainda o
respeito. Qual a lógica disso?
-
Não sei. O mais curioso é que ela valia pra todos. Se você sem
casa estivesse no lugar do que tem um monte de casas, faria o mesmo.
- E
de onde vinha tudo isso – casa, roupa, carro…?
- Aí
que começaram a se ferrar mesmo. Como não eram desenvolvidos pra
suportar frio demais, nem calor demais, nem andar nem nadar
distâncias compridas, nem conseguiam voar, nem enxergar no escuro,
nem comer certas coisas cruas, era preciso derrubar árvores, furar o
chão, matar outros bichos pra resolver. Mas eles achavam graça em
ter mais do que precisavam e até de competir entre eles por conta
disso. Perderam o controle, não sabiam esperar a Natureza repôr o
que usavam. Foram derrubando tudo. Fora que, em troca, eles ainda
davam pra Natureza um tal de plástico. Esse trem não desmancha
nunca!
-
Plástico? Outro nome esquisito. De onde vinha isso, sô?
- De
um monte de lugar. É um troço que eles inventaram e que você dá a
forma que quiser pra ele. Então roupa tem plástico, carro tem
plástico, casa tem plástico, lugar pra levar água tem plástico.
Mas depois que não servia mais, porque às vezes quebra, às vezes
deforma, às vezes eles só cansavam de usar mesmo, eles iam
encostando em algum canto. Inclusive, jogavam no mar. Mataram muito
peixe, golfinho, tartaruga, desse jeito.
-
Deu no que deu. Por isso que a gente tá sozinha no mundo. Cê falou
de não terem o corpo desenvolvido pra essas coisas, mas pelo jeito
que fala, o menos desenvolvido deles era a cabeça.
Nenhum comentário:
Postar um comentário